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Quadrado Inverso: A fotografia é perversa. Autor: Rui Campos

Caros leitores. Antes de mais devo-vos um pedido de desculpas. O início do ano de 2015 trouxe-me alterações de vulto na vida… e também na saúde. Estas alterações impedem-me de assumir um compromisso de índole regular que me obriga a estudo e a preparação para redigir textos. Por outro lado a vertente pragmática da fotografia, aquela que nos leva a falar de coisas e equipamentos que… enfim… não me interessam de todo como já vos referi algumas vezes. Eu prefiro a fotografia no seu fenómeno, no seu conceito, na sua latitude e na sua influência social. Foi esta a promessa que fiz aos senhores leitores quando comecei a escrever estas crónicas. E isto exige tempo, inspiração e vontade para refletir sobre assuntos ligados à fotografia. É por isto mesmo que eu não posso continuar a escrever aqui numa base regular. Não consigo. Vou continuar a escrever sim, mas sem assumir compromissos. A minha vida, neste momento, não me permite isso.

Hoje vamos falar da perversão da fotografia.

Uma fotografia como um documento é algo que tem um propósito claro, uma finalidade e uma validade aceite por um conjunto de pessoas.

IndonesiaIlustração 1- James Natchwey, Indonésia, 2009. “Dancing with fanatics”

Uma fotografia pode encerrar-se em si mesma ou pode abalar o Mundo. Uma fotografia pressupõe sempre duas condições à partida: a pessoa que a faz e a pessoa que a observa (e notem que escrevo observa e não vê).

Uma fotografia como mero registo, redundante e feita por um equipamento é sempre passível de uma interpretação e de uma leitura por parte do observador. E é bom que quem usa uma Câmara fotográfica (seja com que propósito for) tenha sempre isto presente. Quem faz uma fotografia e a apresenta a um público (seja este público quem for) tem de estar preparado para ouvir opiniões e tem de ter perfeita consciência disso mesmo todas e quantas vezes pegar num qualquer equipamento que permita perpetuar registos de um Mundo Natural no Tempo e o apresentar ao mundo num qualquer suporte. Seja este observador versado ou não na matéria, irá formular sempre uma opinião. E a pessoa que faz a fotografia tem de perceber que pode ou não ter de defender o trabalho que fez e por inóquo ou insignificante que este pareça.

souvenir-souvenir_384Ilustração 2 – fonte de imagem: http://jmz.pulp68/?p=4680

Tudo aquilo que não foi passível de interpretação, compreensão ou consciência e foi apenas fotografado não é passível de defesa e encerra-se a si mesmo. E as tentativas por parte do fotógrafo de que esta fotografia não se encerre a si mesma resultam invariavelmente em argumentos soltos e desprovidos de significado. Isto não é Fotografia, são meros registos que referem a um qualquer lugar que existe num Mundo Natural.

Algo que pretende ser um mero registo de uma passagem, algo estéril sem nexo, sem senso, sem propósito e não defensável sequer pelo seu autor não é uma fotografia, é um mero registo. Uma Fotografia deverá ser uma mensagem, uma tomada de posição, uma interpretação de uma conjuntura, uma preocupação ou uma simples reflexão que é transformada num enunciado para o Mundo.

A fotografia “escravizada” de pequenos conselhos, aplicações práticas ou meros artigos redundantes e que terminam em nada… muito pior, a fotografia “convidativa” da imitação de nomes sonantes ao género “faça como eu” é inóqua, redundante e desafia a tudo menos à interpretação própria e típica do Ser Humano, alguém que se limita a imitar os conselhos e as dicas e não recorre ao intelecto para ter uma opinião formulada e defensável não é fotógrafo, é alguém que possui um equipamento fotográfico.

A inquietação, a procura da verdade, a nossa visão do Mundo eram até agora típicas da condição humana. O Ser humano desenvolveu a comunicação, por via da criação de códigos aceites e passíveis de interpretação que permitiram a passagem de conceitos e ideias entre grupos e gerações que permitiram a evolução. A fotografia deriva diretamente destas formas mais primitivas de comunicação… simples gravuras ou pinturas registadas em rochas ou cavernas e que assinalavam lugares de passagem de caça que permitiriam às gerações vindouras e assim garantiam a coisa mais elementar… a perpetuação da espécie. E estas formas mais primitivas e elementares de comunicação careceram sempre de uma interpretação, antes de serem criadas o seu criador estudou a melhor forma de o fazer. E tanto assim que há 2 mil anos antes de Cristo o ser humano começou a registar em suportes motivos divinos. Agora o senhor leitor pergunte-se como é que faria um registo de uma divindade. Teria de a pensar, de a estudar e só depois começar a obra. Arte Comunica, Arte oferece uma proposta ao Mundo (passível de interpretações) e recorre a uma linguagem específica. O Ser humano teve desde sempre o ímpeto de se ultrapassar, de lutar para ultrapassar as dificuldades, de ir mais além e com isto evoluímos até aos dias de hoje e nos afirmámos como seres superiores.

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Mas depois veio o comodismo… em pleno século XXI , com todas as ferramentas de que dispomos teimamos em fotografar com tudo menos com a massa cinzenta.

Abelardo Morell diz continuamente que “a fotografia é perversa, precisa da penumbra para ver a luz, uma imagem tem sempre um negativo, e a própria projeção da luz num plano focal aparece invertida.”

Daguerre era um senhor que procurava lucro imediato e fácil. Percebeu que esta coisa de “fixar as sombras” podia muito bem fazê-lo rico. Inventou o daguerrótipo e tentou vendê-lo ao Mundo. O Daguerrótipo era (e é) porém um beco sem saída, com algumas características mágicas e que permitiram que este ainda seja usado em meios muito exíguos. Daguérre queria lucro e a Fotografia trouxe-lhe mérito. Mas dinheiro não… Terminou com uma renda do Estado Francês.

Fox Talbott era um homem da ciência, reconhecido nas áreas da escrita, matemática, na linguística, na química e na física. Porém não sabia desenhar. O simples facto de querer colocar num papel um mero rascunho era para ele um suplício. Por isso trabalhou para desenvolver uma forma de reproduzir um Mundo Natural de forma imediata e fiel e criou o processo negativo/positivo. Talbott criou Calótipo. O processo que permitiu que uma imagem pudesse reproduzir um Mundo e ser também ela reproduzida um sem número de vezes. Uma imagem fiel à realidade e reproduzida um sem número de vezes mudou o Mundo.

7ef8484b6e452b7a260027ba2202bb0fIlustração 4 – Calótipo, processo positivo/negativo, desenvolvido por Fox Talbott

O Processo de Daguérre (o Daguerrótipo) é um beco sem saída. O propósito de Daguerre era única e simplesmente económico. O Dia Mundial da Fotografia celebra-se no dia 19 de Agosto, data em que Daguérre apresentou no Instituto de França o seu processo. Daguerre ganhou o reconhecimento e perdeu o dinheiro.

A fotografia é perversa.

O advento da fotografia só poderia ter ocorrido em pena Revolução Industrial. Um processo mecânico, químico, físico e imediato. Até à invenção da tecnologia do Vapor, “um homem movimentava-se tão rápido quão um cavalo podia andar, uma mensagem não chegava mais rápido do que um pombo correio conseguia voar”. Era esta a velocidade a que se vivia. Em poucos anos, os comboios atravessavam continentes a velocidades consideradas impossíveis e as mensagens voavam codificadas em Morse, viajando à velocidade da Luz. O Mundo acelerou vertiginosamente. E apareceu a fotografia… que parava o tempo. A fotografia é perversa, e só por isso poderia ter surgido em plena Revolução Industrial.

Em pleno Século XXI, a velocidade com que as coisas ocorrem não é alta, é vertiginosa. E a fotografia obriga os seus utilizadores a parar a fim de tomar consciência acerca da forma como se deve perpetuar um momento.

A fotografia oferece hoje a possibilidade imediata de produzir um ficheiro perfeitamente aceitável e pronto a imprimir e ainda assim o fluxo de trabalho de alguém que sabe o que está a fazer desenrola-se em duas fases. A Produção e a Pós-produção.

A fotografia é tão perversa que nem todo o potencial da Era da informação facilita ou faz de todos excelentes fotógrafos, pesem embora todas as ferramentas, toda a informação e todas as dicas que navegam no ciber-espaço. Nem sequer com os milhões de Terabytes de informação de fotografia que são colocados online a cada de dia que passa.

Viajo pelos sites de fotografia. Entro no site 500px e seleciono as “escolhas do editor”. O resultado é… mais do mesmo… tudo igual… uma moda que vai variando de tempos a tempos… mas varia muito pouco… Paisagem, Natureza, e Mulheres (na categoria de retrato). Entro no Flickr e no separador “explore”, tudo o que vejo é Paisagem, Natureza e de seguida tudo o resto. Entro no site 1x e, no separador “popular”, tudo o que vejo é Paisagem, Natureza e… mulheres… depois uma ínfima parte de tudo o resto. A fotografia é perversa… não há duas pessoas iguais, não há duas interpretações iguais e… os ditos sites da especialidade tudo o que mostram ao mundo é… igual. A perversidade da fotografia é tal que nos oferece a oportunidade de ser ainda mais diferentes, de vivenciar processos identitários e alavancar ainda mais a diversidade (e consequentemente a beleza) do Mundo e da condição humana e… tudo o que queremos é ser mais iguais…

A fotografia é tão perversa que lhe dedicamos horas, dias, meses, anos das nossas vidas e quando dedicamos este tempo pelo caminho errado devolve-nos… nada…

A Fotografia é tão, mas tão perversa que é incrivelmente fácil e há pessoas que demoram décadas a descobrir isso mesmo.

Rui CamposAutor: Rui Campos.

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