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O Camões do Fromage. Autor: Alexandre Luís

Chegaram finalmente! Sejam bem-vindos a casa.

Todos sabemos que eles esperam ansiosamente pelos dias em que podem voltar a pisar a terra que os viu partir. E sem qualquer falácia, são de louvar todos aqueles que não esquecem as suas origens, trazendo a saudade no olhar. Como é bom ver as aldeias, as vilas e as cidades do Interior encherem-se de emigrantes que trazem o rebuliço próprio de quem esteve ausente durante um ano. Uma eternidade para a maioria. A economia local parece revigorar-se com a chuva abençoada de pessoas. Os cafés enchem-se; os supermercados ficam abarrotados; alguns produtos esgotam.

Desde sempre que fico fascinado com a azáfama dos regressados, ainda que temporariamente, porventura por ter sido filho de emigrantes. Todavia o que mais me surpreende atualmente é a ostentação patriótica que hoje vemos nas filas do supermercado ou nos desfiles improvisados de uma qualquer feira diurna ou noturna. Se na minha altura os meus pais exibiam na parte traseira do carro o famoso cão castanho que abanava a cabeça a cada travagem mais impetuosa, hoje vemos nos vidros traseiros dos carros uma gigantesca cruz da seleção, e não só. Vemos famílias totalmente equipadas com a camisola da seleção portuguesa, com os mais fervorosos a ostentar tatuagens da cruz nos braços ou nas barrigas das pernas. Seria de louvar todo este patriotismo, no entanto toda esta exacerbação patriótica cai em saco roto. Infelizmente. E sem querer de todo generalizar, sabemos que existe uma grande percentagem desses “novos patriotas” que de patriota pouco têm, pelo menos na verdadeira aceção da palavra. Porque simplesmente não há patriotismo sem a defesa e elevação da língua portuguesa. E é neste ponto que reside o busílis da minha divagação, se assim a posso chamar. É um punhal que se crava na minha alma quando ouço um suposto patriota disparar a verborreia do franguês. Alguns poderão até nem conhecer totalmente a língua de Camões, porém outros conhecem-na bem. Demasiadamente bem. Como aquele senhor que certo dia ouvi na secção de charcutaria. Ostentando o orgulho da pertença numa camisola de CR7, ia olhando hesitante para os diferentes produtos expostos na vitrina. Depois de uma certa ponderação, lá conseguiu formular parte do seu pedido: “Trezentos gramas…”. Como fiquei orgulhoso dele e da nossa língua. Ele tinha dito «Trezentos gramas…». Digno de registo! Porque grama, com o sentido de peso, é do género masculino. A grama, do género feminino, é nome de relva. Era de louvar! Um exemplo para muitos que se dizem portugueses e que nunca saíram do nosso retângulo. Olhei-o e pareceu-me vislumbrar por breves e eternos segundos o novo Camões. E como ele era magnânimo e… “Trezentos gramas de fromage”. “…de fromage.” O Camões apontava para um pedaço de queijo vermelho. Vermelho como o sangue das palavras derramadas da nossa língua ao longo dos séculos.

Não consegui olhá-lo mais. Aguardei a minha vez, culpando a minha louca ingenuidade. Pedi o que tinha de pedir. Depois de ter ido aos corredores dos produtos escrevinhados na minha lista, lá me dirigi como um autómato para a única caixa aberta. À minha frente, lá estava o Camões do Fromage. Baixei os olhos, envergonhado, e ali orei para que Deus me tornasse surdo por alguns momentos. Não atendeu o meu pedido. Tenho faltado às missas, compreendo. Os diálogos estabelecidos entre o Camões do Fromage, a suposta esposa, que o acompanhava, e a operadora de caixa cortaram-me a garganta do coração.

Mulher: «Não trouxeste fiambre?»

Camões do Fromage: «F_ _ _ – _ _! Esqueci-me!»

(O Camões do Fromage virando-se para a operadora)

«Eu volto já… Vou só buscar jambon… Já volto…»

E lá foi na sua demanda o Camões do Jambon…

 

Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico.

Alexandre Luís (Custom)Alexandre Luís
Foi professor e formador de Português/Francês durante vários anos, até que a famigerada crise o convidou a outros voos. Ultimamente tem-se dedicado à escrita e à fotografia, tendo previsto, num futuro próximo, a edição de um livro de contos e de um romance.

 

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